O Globo
IDADE E ENFARTE NÃO FAZEM PASTINHA DEIXAR A CAPOEIRA
12 de dezembro 1966
O texto
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-Idade e Enfarte Não Fazem Pastinha Deixar a Capoeira
O Globo. Rio de Janeiro, 12 dezembro de 1966„Arma de homem é a que Deus lhe deu, braços e pernas. Se, às vêzes, as pernas servem para correr do inimigo mais forte, podem também derrubá-lo e [..]“. Foi Pastinha, mestre de capoeira que [..] desconhece na velha Salvador – da estirpe [..] Bimba, outra, que, velho, não rejeita parada – [..] fêz dêsse princípio de vida um meio de viver.
Agora, aos 77 anos, não luta mais para exibição; aposenta-se, embora prometa que voltará, que o enfarte que teve foi apenas „uma nuvem que passou nos olhos e tudo vai melhorar“. Ainda vai diáriamente ao Pelourinho, ver funcionar a sua Academia, que êle quer com letras maiúsculas – escola de capoeira e ponto de turismo obrigatório de quem visita a Bahia. Assiste às aulas que são ministradas por um ex-aluno, dos bons, diz êle, mas que os novos não querem aceitar como substituto de Pastinha, já que capoeirista igual a êle não há.
A Primeira Vez
No Rio Vermelho de Baixo, onde mora, diz êle, na sua „academia residencial“, ainda ensina filhos e netos a lutar capoeira, mas de pouquinho, sentando-se com freqüência, para sentir saudades.
Saudade do tempo em que aconteceu de dois guardas tentarem – não lembra por que –, prender Mestre Bimba, sem saberem que era a Mestre Bimba que tentavam prender. Bimba disse que não via homem para levá-lo, os guardas investiram de cassetête e foram ao chão. Vieram mais quatro em socorro e de nôvo investiram e de nôvo foram ao chão. Foi quando êle, Pastinha, chegou e disse: „Mestre Bimba, deixe os meninos.“ E os guardas souberam, só então, a quem tentavam prender. E conta Pastinha que foram todos para a Delegacia, para que os guardas não se sentissem desmoralizados, mas logo o delegado mandou recolher ao xadrez os dois guardas que iniciaram o incidente e Bimba foi sôlto – o delegado tinha sido aluno de Bimba.
De Pastiña a Pastinha
Em 5 de abril de 1889, na Rua do Tijolo, nasceu o maior capoeirista da Bahia, e dois meses depois era levado à pia batismal para receber o nome de Vicente. Vicente Ferreira Pastiña, que seu pai era de origem espanhola.
Menino levado dos diabos, aos fez anos começou a apanhar. Apanhava do menino Honorato, tôda vez que ia ao armazém. Foi ái que Benedito, velho africano, vendo Vicente apanhar de Honorato, perguntou se queria aprender a lutar capoeira. Quis. E diàriamente passou a demonstrar-se na casa do velho; aprendendo, até que um dia Benedito lhe disse: „Hoje você vai ao armazém e deixe que o Honorato lhe provoque“. Foi o caso que Honorato apanhou que foi uma beleza, êle todo franzino dando num menino mais forte.
– Naquela noite – conta Pastinha –, o pai de Honorato foi lá em sua casa dar queixa com o filho pela mão. O velho Pastinha limitou-se a dizer: „Eu já sabia das surras que seu filho dava no meu. Soube que Vicente estava aprendendo capoeira e gostei. O que posso fazer é mandar que o senhor mande seu filho aprender capoeira também.“
– O pai de Honorato não acreditou e quis me ver. Meu pai mandou me chamar. O pai de Honorato me viu muito franzino, pediu licença ao meu velho, queria ver uma demonstração. Dei um rabo-de-arraia tão forte, que Honorato foi ao chão, sem sentidos. Os dois velhos ficaram amigos e nunca mais eu e Honorato brigamos.
Angola em Sonho
Em 1902, Vicente Ferreira Pastiña entrou para a Escola de Aprendizes-Marinheiros e ali ficou, ensinando capoeira aos amigos e colegas, até 1910. Nesse meio tempo, aprendeu o ofício de pintor, trabalhou bastante, mas já então preocupado com abrir a sua escola de capoeira. „Queria mostrar aos homens que aquêles que andam armados são fracos“, diz êle.
Afinal, conseguiu realizar seu sonho: montou a academia, da qual muito se orgulha, no Pelourinho. Pastinha, com nh, ficou sendo seu nome de lutas.
Mestre Pastinha, que já se exibiu em Pôrto Alegre, São Paulo, Guanabara e Brasília, foi até o Congo Belga dar demonstrações. Acha, no entanto, que ali não lutam a verdadeira capoeira, que é luta de Angola. Aliás, seu sonho é levar uma turma brasileira a Angola, certo de que levaria-mos a melhor. Diz êle: – „O futebol veio da Inglaterra e nós somos muito melhores que os ingléses“.
Mas Pastinha está doente e a miséria lhe ronda a porta. Doente, mas otimista, e sonhador:
– Tive um enfarte, mas já estou gingando de nôvo, e já mostro aos meninos como é que se cai, se dá uma rasteira e se mete o pé na cara do adversário, apesar dos meus 77 anos. Uma nuvem andou passando, mas já está indo embora novamente. Se Deus quiser, ainda irei a Angola.
Foto: Pastinha só se realizará totalmente quando puder confrontar lutadores brasileiros com os de Angola, onde a capoeira nasceu
Inimigo do Juiz
Débora é companheira de Pastinha. Há seis anos que êle lhe deu uma „rasteira“.
– Na minha vida de rapaz – conta Pastinha –, nunca pude viver só, sempre tinha quem olhasse pelas minhas roupas. Meu ponto fraco eram as morenas. Tive várias e não sei quantos filhos tenho. Sei que a casa vive cheia de muitos netos e de vez em quando me batem à porta e se apresenta um filho ou uma filha para me mostrar um netinho que precisa jogar capoeira também.
– Mas nunca quis negôcio com Juiz de Paz – explica o mestre da capoeira –, sempre andei brigado com êles. Negôcio de casamento com papel não era para mim.
Débora interfere e conta como Pastinha a conquistou, enviando-lhe bilhetes de corações desenhados com setas atravessadas. E, cheia de ternura, diz:
– Êle já fala em casar e já disse que vai pagar caro o que fêz com as outras: subirá a pé as escadas do Forum Rui Barbosa.
Pastinha, cercado de netos, concorda:
– De tôdas, ela foi a melhor. Estou ficando bom das pernas e subirei mesmo as escadas do Forum.
Vira-se então para o repórter e pede:
– Quer-me fazer um favor? Tire um retrato de nós dois junto e mostre aos leitores de O GLOBO. Diga-lhes que casamento só depois dos 77 anos.