• Correio da Manhã
     BAIANA DE SAIA COMPRIDA SABIA CAPOEIRAGEM; BAIANA DE SAIA CURTA TEM MÊDO DA CAPOEIRAGEM 
    3 de maio 1959

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    • Pandeiro: ?
      Berimbau: M Gigante
      Berimbau: Almiro?
      Pandeiro: ?
      Jogando: M Pastinha e ?
      Terraço do Hotel Glória, 14 de abril, 1959
      3 de Maio, 1959
      Correio da Manhã, RJ

    M Pastinha, 1959

    Texto

    • página

      -

      Baiana de saia comprida sabia capoeiragem; baiana de saia curta tem mêdo da capoeiragem
      Correio da Manhã
      3 de maio, 1959

      „Mestre Pastinha, as mulheres baianas sabem capoeiragem?

      „Seu môço, mulher agora não quer mais saber da capoeiragem: Quando usavam saias compridas não havia quem pudesse competir com elas. Agora, que as saias ficaram curtas, não há nenhuma que se aventure a prender um só golpe“.

      Êste foi o primeiro diálogo que o repórter manteve com o mestre Pastinha, o vôvô dos capoeiras em Salvador, dono da primeira academia do gênero: „Centro Esportivo Capoeira da Angola“.

      Mestre Pastinha ou Vicente Ferreira Pastinha é baiano devoto do Senhor do Bonfim, apreciador de um bom vatapá e capoeira por excelência. Apesar de seus setenta janeiros, mestre Pastinha é uma figura sempre presente aos espetáculos de capoeiragem. Há poucos dias conheci aqui mesmo no Rio. Dirigida êle um grupo de capoeiras que foi ao Rio Grande do Sul mostrar o quê que a Bahia tem.

      Tipo franzino, magro e baixo, é tão ágil como ladrão que rouba. Seu olhar de lado, quase irónico, mostra o tipo manhoso que um bom capoeira deve ser. O valentão que passar a seu lado e pensando no seu tipo franzino, desejar tirar valentia, pode estar certo que mestre Pastinha dará muito trabalho.

      A pedido do repórter êle se dispós a lutar capoeira com alguns de seus discípulos. A sua agilidade nos encabulou. O seu parceiro, um pretão de seus vinte e tantos anos, quis ser mais ágil do que o velho; não conseguiu. Para golpe, mestre Pastinha tem um contragolpe, tão rápido em sua execução como o raciocínio de matemático.

      ***

      „Mestre Pastinha, quais são os golpes em capoeiragem?“

      „O senhor está vendo como êles são ágeis“, nos respondeu o Pastinha, desviando por completo o sentido de minha pergunta.

      Também não me dei por achado:

      „Mestre Pastinha, além do rabo de arraia quais são os outros golpes na capoeiragem?

      „Seu môço, se dissermos os golpes perde a graça, da brincadeira. O senhor não gosta que conte o filme antes de ir ao cinema, não é? Nós também não gostamos de contar, de mostrar os golpes antes de aplicá-los“.

      „Quer dizer que os golpes são verdadeiros segrêdos de estado“.

      „Extamente. Quem entrar para a nossa Academia irá aprendê-los aos poucos“, acentuou o nosso entrevistado, dando por encerrado o assunto.

      Também não quis mais forçá-lo neste assunto. Aproveitei para perguntar-lhe sôbre a sua academia.

      Segundo êle, a sua academia – O Centro Esportivo Capoeira da Angola – é o primeiro da Bahia, pelo menos com reconhecimento oficial. Foi fundado em 23 de fevereiro de 1941. A sua sede ainda hoje é na Baixa do Sapateiro, na Ladeira de Pelourinho. Já tem estatutos e muitos alunos – „crianças e homens, mulheres não querem nada“.

      Pastinha volta agora a seu grupo. De joelhos, êle e um companheiro, em frente dos tocadores, começam a fazer invocações antes de iniciar a luta. Num ritmo bem monótono, mais parecendo ritmo de macumba, os dois começam a fazer desafios. De reprente iniciam a luta que mais parece um espetáculo de ballet a dois.

      Marcando o ritmo dos dois lutadores, os torcedores em cadência lenta vão fazendo uso de seus instrumentos. De todos os instrumentos, o berimbau é o mais conhecido. É um arco de pau beriba (daí o nome) ligado em suas extremidades por um arame esticado. Na extremidade inferior, há uma cabaça que permite a percussão do som. A corda de arame é esticada com o um dobrão (moeda). Com o auxílio de um pauzinho o tocador golpeia a corda, dando em consequência a ressonância, através da cabaça, de um ruído bem caraterístico.

      Os outros instrumentos usados pelos tocadores são pandeiro e reco-reco.

      Enquanto Pastinha faz evoluções, alguém nos explica que a Capoeira da Angola tem um „jôgo“ mais lento. „Isto é, nos esclarece, o ritmo da música sendo mais lento, obriga os capoeiras a entrarem na mesma cadência.

      A capoeiragem foi trazida pelos negros africanos. Os senhores das fazendas, entretanto, não permitiam essas lutas; achavam-na por demais anti-humanas. Mas os negros, manhosos como a própria capoeira, para não perderem a forma, transformaram a luta em espetáculo de dança. Os senhores sentados na varanda da casa grande podiam observar as evoluções dos capoeiristas. Assim era permitida a capoeiragem.

      Segundo os toques dos tocadores é possível distinguir os vários tipos de capoeiras, entre elas citemos: S. Bento Grande, S. Bento Pequeno, Santa Maria, Samongo, Riuna [Iúna – velhosmestres.com], Angolê [Angolinha?] e a da Angola, a mais lenta de todos.

      Pastinha volta agora ao nosso lado. Apesar de ter „jogado“ a capoeira por mais de 20 minutos, nem parecia. O hábito de „jogar“ desde criança lhe deu o preparo necessário para que até aos 70 anos pudesse competir com os mais jovens e ágeis.

      Perguntei ao Pastinha a razão de os capoeiras olharem de lado quando „jogam“. A resposta veio imediata:

      - Esta é uma das manhas do jôgo. Olhando-se de lado, impede que o adversário perceba a direção de seus golpes. Observe como se fica confuso quando na rua duas pessoas se deparam frente à frente, uma olhando para a outra: perdem por completo a direção, ficam tontas, não é? Também na capoeira acontece quase o mesmo. Se o parceiro olhasse para o seu adversário saberia qual a intenção. Os olhos, como já dizem os poetas, é o espelho da alma e eu agora digo, é também o espelho da intenções“.

      Realmente, os capoeiras não se olham diretamente, sômente com as „bandas“ dos olhos. E esta maneira é bem característica de todos os bons capoeiras. Mestre Pastinha é um exemplo típico; durante a entrevista poucas vêzes olhou o repórter de frente, quase sempre de lado, como se estivesse desconfiado de alguma coisa.

      Pastinha tinha de ir. Outros compromissos chamavam-no. Mas ainda tive tempo de lhe fazer a última pergunta:

      - O sr. no comêço desta entrevista me informou que as mulheres baianas de saias compridas dançavam capoeira, as de agora, que usam saias curtas, não querem nada. Mas como elas conseguiam „jogar“ capoeira de saias compridas?

      - Inicialmente, capoeira não é dança; é luta no duro, talvez a mais brasileira de todas as que existem por aí. Mas as mulheres de ontem, quando tinham de entrar no „barulho“ apanhavam os trazeiros da saia prendendo-os na calça. Assim o vestido comprido se transformava em calça, permitindo amplos movimentos.

      - Mas as mulheres de ontem brigavam muito?

      - Para lhe ser sicero brigavam pouco, porém quando entravam na briga era para valer. E não era briga de dar mordidas, nem tampouco puxar cabelos; era mesmo briga para valer. Brigavam tão bem com qualquer homem.

      Agradecia Pastinha, que lá se foi com o seu grupo idealista que pratica a capoeira não para brigar, mas para manter uma das nossa tradições legadas pelo negros. Enquanto muitos querem transformar a capoeira em autênticos espetáculos de ballets, Pastinha e seus discípulos mantêm o „jôgo“ em seu estado natural.


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