• Mestre Pastinha vai moralizar a capoeiragem
     Coreografia de Angola em terreiros da Bahia 
    Correio Paulistano, 3/jan/1953

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    • Eis um grupo de alunos de Vicente Pastinha, no Centro Esportivo Angola, todos munidos de berimbaus, reco-recos.
    M Pastinha, 1953


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      [a legenda da série de fotos] Mestre Pastinha mostra como se "beija" o peito de um sujeito, isto é, como se lhe dá uma cabeçada no meio do peito

      Mestre Pastinha vai moralizar a capoeiragem
      Coreografia de Angola em terreiros da Bahia
      Reportagem de Ibiapaba Martins
      Correio Paulistano, 3/jan/1953

      "Boca de calça não se perde e capoeira que se conhece nunca abandona um pouco de pimenta do tradições antagonistas entre os bambas de Salvador - "Aús" e "chibatas" num terreiro

      Hoje, vamos escrever sobre capoeira. Assunto esportivo, vem sendo debatido principalmente por folcloristas. Daí, talvez, os erros crassos que estão sendo cometidos na discussão do nosso esporte nacional. Feito entre introito, entremos no assunto.

      Hoje, a capoeira é um mito fora da Bahia. Talvez possamos encontrar em qualquer lugar do país sujeitos capazes de arrumar com os dois pés no rosto do adversario. Mas somente em Salvador vê-la-emos confundir-se com a coreografia, a musica, a religião e a defesa pessoal porque só aí encontraremos netas e bisnetas de antigos proprietarios de escravos apreciando o jogo nos terreiros e sendo, tambem elas, capazes de traços difíceis, desenhar uma "chibata", descrever um "aú" e projetar o corpo num "faz que vai mas não vai". A praça localizada defronte à Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia - para citarmos um exemplo apenas - chama-se Terreiro e teve esse nome porque desde seus primordios a capoeira foi uma de suas caras tradições. Hoje ainda, quase todos os estudantes de medicina da tradicional Faculdade se entregam ao jogo nacional.

      AS TRÊS ESCOLAS DE SALVADOR

      Há três escolas de capoeira na cidade do Salvador. Existem muitas academias mas escolas (empregamos a palavra no sentido do corrente, tendencia) há apenas três. A primeira é a mais antiga talvez, hoje quasi desaparecida. Chama-se Escola de São Bento e se cultiva entre os que receberam a tradição dos negros escravos de São Bento das Lages. Os capoeiristas de São Bento empregam frequentamente as mãos, o que já não sucede com os defensores de Angola que, estes, absolutamente as encostam no contendor. A ultima escola é chamada Regional e não passa de um aperfeiçoamento (no sentido de defesa pessoal) da velha Angola por parte de um revolucionario da arte - o Mestre Bimba. Inteligente, dotado de grande força física - xodó dos estudantes de Medicina, Bimba montou academia. A escola prosperou, o numero de alunos aumentou e, com a fama dos briguentes que a frequentavam, cresceu tambem a fama do professor. Foi a partir de então que os cearenses adquiriram fama de valentes da velha Bahia, contou-nos Heron de Alencar, cearense "naturalizado" baiano. Reuniam-se eles em grupos de três ou quatro e se espalhavam pelas ruas da cidade, derrubando soldados, portugueses e baianos. No final, nada acontecia... porque sempre foi tradição na Bahia ter um chefe de policia cearense... Vem daí principalmente a fama de Mestre Bimba, o homem que cometeu a suprema heresia de introduzir golpes de savata, boxe e jiu-jitsu na velha capoeira dos negros angolas. Estes, os negros angolas, foram os pais da capoeira. Hoje, chama-se Angola a escola mais pura da Bahia, a terceira [segunda?] escola.

      VESTIDOS DE BRANDO OS DEFENSORES DA TRADIÇÃO

      Quem defende a tradição é a escola de Angola. Nesta, vemos a capoeira confundir-se com a dança. Nas grandes ocasiões, o angolense se apresenta de branco, sapato pintado de alvaiade, paletó saco, gravatinha de borboleta. E luta em cima da lama, do tijuco imundo (tambem pode fazê-lo no interior de uma sala cheia de bibelôs e vasos frageis), timbrando em sair da pugna sem uma nodoa siquer. E o que é mais: sem ter sujado o adversario. Faz questão de esgrimir agilmente cabeça e pernas, paralisando o golpe justamente no momento em que pés ou coco chegam quasi a tocar o corpo do adversario. A escola de Angola não se utiliza das mãos, a não ser para apoiar-se no chão quando o capoeirista aplica "rabos de arraia", "aus" e "chibatas".

      Iamos-nos esquecendo de um pormenor importante: a capoeira é praticada ao som do berimbau, do caxixi, do pandeiro e do reco-reco, iniciando-se com as chulas de fundamento tiradas pelo mestre:

      SINHAZINHA, que vende aí?
      Vendo arroz do Maranhão
      Meu sinhô mandô vendê
      Na terra de Salomão
      Aruandê

      Os que formam a roda, os que empunham os reco-recos e berimbaus fazem coro:

      Ê, ê
      aruandê
      Camarado
      Galo cantô
      ê, ê
      galo cantô
      Camarado
      Cocorocô
      ê, ê
      Camarado.

      Quase sempre os rítmos são improvidos. E os que empunham os instrumentos de som, principalmente o que segura o berimbau, este dá o ritmo do jogo, acelerando ou compassando. Os jogadores orientam a velocidade de suas "chibatas", dos ataque e contra-ataques pelo som do berimbau. Conta a tradição que o berimbau se destinava a camuflar o jogo da capoeira, nos tempos em que esta era proibida pela policia. Formava-se a roda, os capoeiristas se enfrentam mas, quando chegava a policia, encontrava apenas uma roda inocente de pessoas tocando berimbaus e pandeiro.

      MESTRE BIMBA [PASTINHA], O MESTRE

      Não pesa mais de quarenta e nove quilos e conta atualmente sessenta e quatro anos. Chama-se Vicente Pastinha, é pintor de profissão e aprendeu Angola quando menino, "vadiando" com os velhos africanos. Em 1912, abandonou o jogo "por não ser conveniente..." (a policia passou a perseguir severamente os capoeiras nessa epoca). Mas em 1941, ocorreu um novo surto do esporte que, aliás, nunca havia morrido. Voltou igualmente Mestre Pastinha que nunca se esquecera dos seus "aus" e "faz que vai e não vai..."

      - "Voltei a pedido de um amigo", disse-nos ele certa vez. "E estou nesta vadiação para moralizar a arte".

      Diante dos nosso olhos, aquele velhinho colocou uma nota de dez cruzeiros no chão encerado de uma sala de visitas, afastou os moveis e convidou "Alemão" para alguns movimentos. "Alemão" é um guarda-civil de Salvador, forte como um touro, vinte e três anos, mestre tambem de capoeira. E Mestre Pastinha explicou:

      - "Está vendo este dinheiro? Sabe o que significa? Faz de conta que houve uma briga; uma de nós puxou uma faca e essa acabou caindo no chão. Agora, os capoeiras tratam de apanhá-la. Quem pegar o dinheiro, pega a vida. Quem não pegar, morre".

      Começou então o gingar dos capoeiras. O velhinho, que vadiava havia mais de uma hora, depois de uns quinze minutos de "chibatas" e "aus", "bençãos" e "cocadas", acabou apanhando a cedula com os dentes, não obstante o outro tivesse empregado todos os esforços para não ser derrotado por um contendor quarenta anos mais velho...

      Descansado, sem ofegar, Mestre Pastinha explicou alguns segredos:

      - "Boca de calça não se perde. Nunca a gente deve deixar o outro encostar: não sou balança nem quero carregar peso. Capoeira que se conhece não abandona um pouquinho de pimenta do reino. É bom para os olhos do arversario. Capoeirista precipitado é cego. O velho sabe. A gente não pode ver peito descoberto sem sentir vontade de beijar (cabeçada). Os olhos devem estar sempre vigiando..."

      Mestre Pastinha acaba de organizar uma academia. Academia de Angola, pura, sem o hibridismo da Regional de Mestre Bimba. É absolutamente gratis, porque a intenção do velhinho é apenas moralizar a arte. Todos de branco, em cima da lama, em contorsões acrobaticas, ageis como serpentes, os angolenses restabelecerão o prestígio da capoeira que só tem prestígio na velha Bahia. Sim, porque hoje capoeira é um mito fora da Bahia. E todo cidadão que leu três livros sobre folclore entende então de dizer asneiras sobre o assunto.


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