A Tarde
De Wildberger* a Besouro
João Moniz**
“Besouro foi a maior atração de minha infância. Seus combates simulados com Doze Homens, Ioiô, Nicori e outros capoeiristas seus amigos, ao som do berimbau e do pandeiro, eram espetáculos magníficos de força, agilidade e delicadeza, em que os suarentos e leais contendores se aplicavam, mutuamente, os perigosos preceitos de ataque e defesa, cuidadosos de se não machucarem, por que não saíssem malavindos do brinquedo. E Besouro, então, primava por essas atitudes de nobreza, ele que era respeitado como o primus inter pares, no recôncavo e no costeiro baianos, da luta, que lhe levaria o nome, em situação privilegiada, ao nosso folclore.
Conheci Besouro na pujança dos seus vinte e poucos anos. Era amável, brincalhão, amigo das crianças e ‘respeitador dos brancos’. De uma coragem pessoal que parecia loucura, gostava de ‘buli’ com a polícia. E não raro explodia um turundundum dos diabos em frente à cadeia velha, sua terra natal. Era Besouro, que, noite velha, havia acordado o destacamento para um ‘brinquedo’, que se prolongava em correrias e tiros, e de que ele saía ileso e sempre sorrindo, como entrava.
Às vezes, no calor da luta, tirava um pouco de ‘tinta’ nos praças, mas nunca matou ninguém. Tinha tanto horror a palavra assassino quanto adorava o termo valente, que lhe cabia a rigor.
[..]
Aquele particípio - abatido - empregado pelo repôrter [Cláudio Tavares em O Cruzeiro, 1948], deixa entender que Besouro matou oito soldados e por isso foi morto. Não, já deixei dito que Besouro nunca matou ninguém, e posso afirmar, com absoluta segurança, que não foi morto pela polícia.
Contam-se duas versões da morte de Besouro. Uma, inverídica, resultante de perfídia política, e a outra, verdadeira, em que Besouro, embriagado, fora ferido a punhal, traiçoeiramente, por um rapazelho subestimado por ele à vista de outros, quando bebiam numa venda. E não morreu propriamente do golpe, mas, de mau trato, que o deixaram no chão por mais de um dia, o intestino à mostra, antes que o trouxessem para a Santa Casa de Misericôrdia de Santo Amaro, onde fechou os olhos para a vida, cercado de amigos, admiradores e curiosos."
* Comerciante suiço Emil Wildberger, 1871-1946, o maior exportador de cacau da Bahia no começo de 1900.
** Poeta santamarense.
A Tarde. 5 e 7 de maio de 1949