• Revista Geográfica Universal, n.98
     A ARTE DA CAPOEIRA NOS TERREIROS DA BAHIA 
    janeiro, 1983

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    Velhos Mestres, 1983

    O texto

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      A Arte da Capoeira nos Terreiros da Bahia
      Revista Geográfica Universal
      janeiro, 1983

      Texto de REYNIVALDO BRITO
      Fotos de TADEU LUBAMBO

      PRODUTO da alegria e da criatividade dos negros africanos trazidos para o Brasil, a capoeira surgiu provavelmente nas senzalas da Bahia como um jogo que mistura dança, ritmo e cânticos, transformando-se mais tarde numa forma de assegurar a sobrevivência daqueles que a praticavam. Desde a Bahia, a capoeira foi sendo divulgada e, aos poucos, ganhou um considerável número de adeptos entre os escravos, especialmente em Pernambuco e no Rio de Janeiro.

      Hoje, esse jogo pode ser aprendido em sofisticadas academias em quase todo o país, mas é ainda nos becos e ladeiras da velha Salvador que se pratica a verdadeira capoeira e o princípio segundo o qual a habilidade física é suficiente para derrotar a força quando bem utilizada. Apesar de suas fortes raízes baianas e da nítida influência africana, o etnólogo Waldeloir Rego diz que não se pode afirmar com precisão de onde se originou o jogo.

      Segundo Rego, não há qualquer evidência de que a chamada capoeira de Angola tenha surgido naquele país africano. A capoeira regional comprovadamente foi criada por um baiano, o negro Manuel dos Reis, conhecido em Salvador como "o temível Mestre Bimba", que morreu em 1973 [1974 - aqui e em diante velhosmestres.com]. Mestre Bimba e Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, falecido em 1981, foram os principais responsáveis pela divulgação da capoeira em todo o país.

      Mestre Bimba dizia que a regional era a verdadeira capoeira, enquanto que mestre Pastinha defendia a de Angola como a mais autêntica. Mas eles se respeitavam muito. Conheci Mestre Bimba de perto, e durante mais de três anos freqüentei a sua academia regional, que funciona até hoje dentro do conjunto arquitetônico do Pelourinho, exatamente no Maciel, local temido por estar situado na zona do chamado baixo meretrício.

      Ali convivi com gente de todas as camadas sociais e pude sentir de perto a força da sua personalidade. Lembro ainda que, no primeiro dia que cheguei à academia, ele colocou uma cadeira na minha frente e ordenou que passasse a perna várias vezes por cima dela. Fiquei repetindo aquele movimento, me sentindo um pouco idiota, até que ele surgiu e me jogou ao chão com uma bênção (um golpe com o qual o capoeirista atinge o tórax do adversário com a sola do pé). Foi a primeira lição que recebi.

      Tornei-me amigo de Mestre Pastinha e de sua inseparável companheira, Maria Romélia. Quando o velho mestre estava à morte, em um quarto úmido de um pardieiro da Rua Alfredo Brito [n. 14], no Pelourinho, aproximei-me de Maria Romélia para tentar ajudar. Mas pouco adiantou, pois Pastinha morreu pobre e quase esquecido. Hoje [em 1983], a maioria dos grandes mestre tem mais de cinqüenta anos, havendo casos, como o de Mestre Cobrinha Verde, com 74 anos [na verdade 70, que nasceu no 24/out/1912].

      Fotos: No mesmo ambiente em que os primeiros capoeiras se exercitavam, os velhos mestres do jogo encontraram-se. Na foto à esquerda estão (da esquerda para a direita) João Grande, João Pequeno, Gato, Canjiquinha, Waldemar e Cobrinha Verde. Na foto maior, parte do casario antigo do Pelourinho, em Salvador, considerado até hoje o grande centro da capoeira no país, e Mestre Cobrinha Verde, de 74 anos [70]. Localizado no zona do chamado baixo meretrício, o Pelourinho continua atraindo turistas de todo o país devido à sua arquitetura e à capoeira.

      Recentemente [em 1982] reuniram-se numa roda de capoeira os mestres Rafael Alves França (Cobrinha Verde), Waldemar da Paixão (Waldemar), Washington Bruno da Silva (Canjiquinha), José Gabriel Góis (Gato), João Pereira dos Santos (João Pequeno) e João Oliveira dos Santos (João Grande). Juntos, eles foram ao Pelourinho, antigo palco de lutas de famosos capoeiristas no tempo da escravatura.

      Formada a roda, quando os berimbaus começaram a tocar, os velhos mestres não se contentaram em orientar seus alunos e entraram no jogo. Foi talvez a última vez

      Fotos: Embora seja muito praticada na área do Pelourinho, a capoeira é jogada em todos os lugares da capital baiana. Alguns de seus adeptos preferem as praias, pois a areia macia ameniza as quedas.

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      que eles estiveram reunidos, pois a maioria vive em lugares quase inacessíveis, ganhando a vida através de pequenos biscates que não os obrigam a cumprimir horários ou a ter qualquer tipo de compromisso.

      Os velhos mestres são pessoas que trazem consigo as marcas e as mágoas da vida que esolheram e não se preocupam muito com o futuro. Antigamente, eles viviam brincando nas ruas e nos bares, onde eram respeitados e queridos. Mas os tempos são outros e eles abandonaram suas academias, dando margem ao surgimento de outras escolas, mais sofisticadas e "cheias de gente fina", como afirmou o mestre Canjiquinha.

      É bem verdade que o capoeira sempre foi considerado um marginal, um delinqüente. A sociedade vigiava seus passos e existitam leis para enquadrá-lo e puni-lo. O Código Criminal do Império, de 1830, considera o capoeira um vadio, sem profissão definida, razão pela qual era automaticamente enquadrado no Capítulo IV, artigo 295, que trata dos vadios e mendingos. Já o Código Penal da República, de 1890, concedeu um tratamento específico aos capoeiras no Capítulo XII, intitulado "Dos vadios e capoeiras". Quem estivesse em uma dessas categorias poderia sofrer prisão cautelar por um mínimo de dois e um máximo de seis meses, sendo que no caso dos chefes (mestres) a pena dobrava.

      Esse tipo de tratamento que a legislação dava aos praticantes desse jogo gerou uma série de conflitos entre capoeiras e autoridades, em vários estados brasileiros, a ponto de o assunto ser tratado nos últimos dias do império e nos primeiros da república como sendo de "segurança nacional". Os choques foram tantos que o Marechal Deodoro da Fonseca viu-se obrigado a destruir o seu gabinete após um episódio em que se envolvera o tímido capoeira Juca Reis (José Elísio Reis), filho do primeiro conde de São Salvador de Matosinhos. Juca Reis desafiou a autoridade de Joaquim Sampaio Ferraz, primeiro chefe de polícia da república, que punia as atividades dos capoeiras. O caso termonou em uma sessão do Conselho de Ministros.

      Na Bahia havia também um chefe de polícia que ficou famoso como perseguidor de terreiros de candomblé e de rodas de capoeira. Tratava-se de Pedro de Azevedo Gordilho, o Pedrito. Sua ação foi contida pelo então interventor da Bahia, Juracy Magalhães, que mandou chamar a palácio o Mestre Bimba e lhe pediu que registrasse sua academia na Secretaria de Educação e Cultura. Aos poucos, a capoeira foi sendo respeitada e ganhando importância entre as manifestações culturais afro-brasileiras.

      Existem capoeiristas em todos os estados brasileiros e muitas da academias são dirigidas por ex-alunos dos velhos mestre do Pelourinho. A capoeira é hoje uma luta nacional, mas a sua prática ainda está profundamente ligada às raizes baianas. Para que surja uma roda é preciso antes de qualquer coisa um bom tocador de berimbau - um instrumento constituído de um pedaço de pau, que pode ser araçá, pombo ou outra madeira que tenha elasticidade e que possa ser dobrada em forma de meia-lua, por meio de um arame de aço esticado entre as duas extremidades. Para conseguir a ressonância, coloca-se numa dessas extremidades uma pequena cabaça de tamanho regular. Para completar o instrumento, uma moeda de cobre, uma vareta e um caxixi proporcionam ótima percussão.

      A ladainha cantada durante a luta é puxada pelo mestre, que funciona como solista. A cada toque de berimbau corresponde uma modalidade de jogo. Os versos não têm métrica nem rima. São geralmente improvisados e sempre ligados a temas que evidenciam suas raízes populares. A melodia de compasso binário e a harmonia bastante simples completam o envolvente clima das rodas de capoeira.

      Os capoeiristas ficam agachados na cocorinha, como eles chamam, enquanto ouvem o som do berimbau e a ladainha do mestre. Assim que a ladainha termina, todos gritam: "É faca de matar/camarada/Ê, ê, ê, mandingueiro, camarada/Ê, ê, ê cocorocó, camarada." Os capoeiristas se benzem com sinais característicos do cristianismo ou fazem gestos originários do rituais de candomblé e, em seguida, cumprimentam-se com um aperto de mão para dar início ao jogo propriamente dito.

      Os corpos negros e velozes lançam-se ao ar e ao chão, cada um procurando atingir

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      o parceiro com rasteiras, bênçãos, martelos, cabeçadas ou rabos-de-arraia, além de uma infinidade de golpes que sempre são introduzidos pelos mestres. Os golpes são desferidos enquanto os capoeiristas ficam gingando os corpos, tentando livrar-se dos adversários.

      Essa ginga é uma parte de fundamental importância, enquanto um capoeira fica espreitando a hora exata de atacar e o outro fica na defesa, contra-atacando com o que é chamado de negativa - um golpe de defesa e contra-ataque, pois o capoeira nega o corpo ao adversário, caindo para trás e arrastando com seu pé o pé de apoio do outro para derrubá-lo.

      A capoeira é uma manifestação tão forte e tão autêntica que, mesmo nas luxuosas academias do centro do país, ela não perdeu a sua essência: a malícia. Além disso, tem resistido bravamente às tentativas de folclorização e mesmo ao enfraquecimento econômico de algumas antigas e tradicionais academias. E os novos mestres seguem as escolas de seus professores, mantendo inclusive as disputas pessoais e as divergências técnicas.

      Os dois grandes mestres, Pastinha e Bimba, discordavam em relação à origem da capoeira e também quanto à maneira de jogar. Enquanto Bimba defendia veementemente que a capoeira (que chamava de regional) havia surgido nos engenhos do Recôncavo baiano, Pastinha afirmava que o jogo procedia de Angola e escolheu este nome para denominar o tipo de capoeira que ensina a seus alunos. A diferença básica entre as duas é que a regional aproveita mais o jogo rasteiro e tem uma mistura de golpes de outras formas de luta, enquanto a capoeira de Angola usa muitos golpes altos e floreios, prestando-se mais para exibições para turistas.

      Até hoje os grandes centros de capoeira são a Bahia, Pernambuco e o Rio de Janeiro. Os antigos mestres vão sendo aos poucos substituídos nas academias por seus ex-alunos, mas são todos homens acostumados às dificuldades da vida e a usar o seu próprio corpo como arma de defesa e ataque, graças à malícia e à agilidade.

      Fotos: Com a velha Salvador ao fundo, os Mestres João Grande e João Pequeno mostram (nas páginas 64-65) sua habilidade na luta. Na foto maior, Mestre Waldemar, responsável pelos melhores berimbaus usados nas rodas baianas. Graças à continuidade do trabalho dos velhos mestres, existe hoje na Bahia um grupo de novos capoeiras tão habilidosos quanto os do passado. Entre os nomes de destaque da nova geração pode-se mencionar o de Mestre Vermelho [27, de Bimba] (o calvo da foto à esquerda).



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