• Odorico Tavares
     BAHIA. IMAGENS DA TERRA E DO POVO 
    1951

    Imagens

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    M Waldemar, 1951


    O caminho à barracão de M Waldemar

    Tavares, 1951


    O texto

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      BAHIA Imagens da terra e do povo
      Odorico Tavares
      1951

      Capoeira

      Se o visitante quer assistir ao jôgo da capoeira, há, hoje, mais de um barracão onde pode ir. O de Juvenal, no Chame-Chame, o de Pastinha, no Pelourinho, o de Canjiquinha, no Turismo, o de Mestre Bimba, no Alto de Amaralina, o de Valdemar, no Corta-Braço. Que vá então ao de Valdemar, no domingo, à tarde. Tome sua condição, peça para ir, pela Estrada da Liberdade, e não tem o que errar: o passeio por si é

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      belo, pois conhecerá os mesmos caminhos por onde entraram as tropas que fizeram a independência da Bahia, em 1823. Saia, por Nazaré [1 no mapa acima] e, logo, na descida para o Barbalho [2 no mapa acima], divisa, na tarde que cai, o panorama dos grandes sobrados, na linha do alto das colinas sobretudo a massa do Convento do Carmo [3 no mapa acima]. Depois, o casario da Soledade [4 no mapa acima], onde mais de um belíssimo edifício do século 18 chamará a atenção, alguns dêles ostentando beirais inteiros de telhas de azulejos; em seguida, a Lapinha [5 no mapa acima], com suas casinhas em fieira, com seu colorido nas fachadas, numa delas tendo morado a artista Djanira, ali mesmo pintando as figuras do povo que passavam: o menino vendedor de cana, o cego-orquestra, as ruazinhas, os garotos do bairro. Verá o largo da igreja, repleto de pessoas passeando no domingo, como nos velhos tempos, namorados de mãos dadas, a luz baiana dominando, a vista da cidade baixa, no fundo da praça, depois a Liberdade, e antes de chegar ao cinema [6 no mapa, um cinema do bairro que antecedeu o de Sr Agnelo], logo na esquina do armazém Progresso [7 no mapa acima, o armazém que antecedeu o armazém Olhepreço que depois comprou o armazém de Sr Agnelo], tem que dobrar à esquerda: siga e mais adiante está o barracão de Valdemar [W no mapa acima]. Pode entrar sem susto que será muito bem recebido.

      O barracão aberto a todos, já estará repleto: o pessoal do bairro, os de todos os domingos, fica em pé: os bancos da frente, para as visitas. Por mais gente que tenha, há sempre quem se levante para dar lugar aos visitantes: coisas da polidez baiana que não é privilégio nem do Corredor da Vitória, nem da Barra, nem da Graça: é de tôda gente da terra baiana. Pois que sente e assista com interêsse, com calma, ao jôgo da capoeira.

      Em frente, sentado o mestre Valdemar com o berimbau, comandando. Há mais de um tocando berimbau,

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      belo arco retêso, tendo ao pé uma caixa de ressonância, que é uma cabaça colorida. Com uma vareta produz o tocador a vibração no fio do arco, usando também uma velha moeda de cobre, aproximando e afastando, em ritmo, a cabaça da barriga. Há outros instrumentos: os pandeiros, o caxixi, o reco-reco. Pois, com êstes, está formada a "orquestra" do jôgo da capoeira.

      Com os tocadores ao seu lado o mestre levanta a voz, iniciando o canto. Os jogadores, em número de dois, estão de cócoras, à sua frente. é lenta a toada que o mestre canta, como solista e já os capoeiras acompanham-no em movimentos mais lentos ainda, como cobras que começam a mover-se: olhe o visitante atentamente, como aqueles homens nem ossos tivessem, seus membros parecem que recebem um impulso quase insensível, de dentro para fora. O mestre canta os últimos versos do seu solo e o coro responde, os instrumentos respondem fortes, o ritmo violento, as vozes altas:

      Aruandê
      ê, ê
      Aruandê
      Camarado

      Já os capoeiras se expandem em gestos, em movimentos, em baile que será sempre surpresa. É dança que é luta: golpes, negaças, rasteiras, numa surpreendente beleza de movimentos. Os homens não se tocam para defesas e ataques que se sucedem em imprevistos de segundos. É um milagre em que a violência de um ataque resulte em outro ataque, em que ninguém se toca, ninguém se fere, ninguém

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      se fere, ninguém se agride. É combate, é baile que dura horas. Estão suados, mas jamais há o menor ar de cansaço. Pode ser uma criança, pode ser um jovem, pode ser um velho: a resistência é a mesma. No mundo da capoeira não há possibilidade de derrota pelo cansaço físico.

      Pois que a dança prossegue a tarde tôda, os cantos são os mais diversos, a agilidade espantosa dos bailarinos dá motivação a uma variedade de movimentos, que prende o visitante até a noite.

      Caribé, que editou excelente álbum de desenhos sôbre a capoeira, salienta que o toque do berimbau que "dita o jôgo" é variado: "Se toca "São Bento Grande", o jôgo é ligeiro, vistoso. Se o toque é "Banguela" é jôgo de dentro, com faca. Se é "Santa Maria" é jôgo de baixo, em que os camarados se enroscam como minhocas, ao rès-do-chão, sem juntas, caindo docemente, como se fôssem de algodão. Se é "São Bento Pequeno", a luta é quase um samba." E ainda há outros toques, como "Ave Maria", "Amazonas", "Iúna", "Cavalaria".

      Quanto aos cantos, há dezenas dêles, não somente os permanentes, que passam de geração a geração, como "Apanha laranja no chão, tico-tico", considerado um hino de capoeira, como também os improvisados. Valdemar improvisa mais de uma letra, pelo menos, como os travadores populares.

      Sempre houve o jôgo da capoeira? Desde os primeiros tempos da escravidão, vindo de Angola, mas como ato de simulação, escondendo, por trás dele, os verdadeiros intuitos dos seus componentes de se adestrarem para a luta, para o que der e vier. Os capoeiras brincando

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      e jogando, nenhuma suspeita poderiam causar aos seus donos. Os negros de Angola já vinham senhores de sua agilidade, de sua força física, postas à prova em mais de uma revolta, em mais de um conflito, em mais de um incidente. E êstes homens que lutavam, esmagando o adversário, em segundos, matando num salto, numa revira-volta, constituíram os capoeiras famosos, que encheram de pânico, muitas vêzes, as ruas de cidades, como o Rio, Salvador, ou Recife.

      Logo após a proclamação da República, o primeiro chefe de Polícia do govêrno provisório, Sampaio Ferraz, decidiu acabar com o império dos capoeiras: fôra mais fácil acabar com o outro, o de Pedro II. Pois o enérgico chefe de Polícia limpou a Capital Federal dos arruaceiros e de tal maneira agiu, implacàvelmente, que sua ação fêz tremer a sorte do Ministério. Os capoeiras se dividiam em grupos, e grupos a serviço, quase sempre, de poderosos e de tal maneira prestigiados, que, muitas vêzes, entre êles se encontravam pessoas de famílias ilustres. Raimundo Magalhães Júnior, em seu livro, "Deodoro, a espada contra o Império", conta com detalhes o incidente e mostra que homens como Coelho Neto não escondiam sua admiração pelos capoeiras. O autor de "Rei Negro" deixou mesmo página a respeito, transcrita por Magalhães Júnior e que damos abaixo:

      "Os grandes condutores de malta - guiamuns e nagôs - orgulhavam-se de seus golpes rápidos e decisivos e "eram êles, na gíria do tempo: a cocada, que desmandibulava o camarada, ou, quando atirada ao estômago, o deixava em síncope, estatelado no meio da rua, de bôca

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      aberta e olhos em alvo: o grampeamento, lanço de mão aos olhos, com o indicador e o anular em forquilha que fazia o mano, ver estrêlas; o cotovêlo em aríete ao peito ou flanco; a joelhada; o rabo-de-arraia, risco com que Ciríaco derrotou em dois tempos, deixando-o sem sentidos, ao famoso campeão japonês de jiu-jitsu; e eram rasteiras, desde a de arranque, ou tesoura, até a baixa, ou baiana; as canelas e os pontapés em que alguns eram tão ágeis que chegavam com o bico quadrado das botinas ao queixo do antagonista; e ainda, as bolachas, desde o tapa-ôlho que fulminava, até a beiço arriba, que esborcinhava a bôca ao puaia. E os ademanes de engano, os refugos do corpo, as negaças, os altos de banda, à maneira felina, tôda uma ginástica em que o atleta parecia elástico, fugindo ao contrário como a evitá-lo para, a súbitas, cair-lhe em cima, desarrumando-o, e fazendo mergulhar num banho de fumaça. Era tal a valentia dêsses homens que, se se fechava o tempo, como então se dizia, e no tumulho alguém bradava algum nome conhecido, como Bôca-queimada, Manduca-da-praia, Trina-Espinha ou Trindade, a debandada começava por parte da polícia e viam-se urbanos e permanentes valendo-se das pernas para não entregarem o chanfalho e os queixos aos famanazes que andavam com êles de candeia às avessas."

      Pois os Manduca-da-praia ou os Bôca-queimada tinham adeptos fervorosos e ilustres da capoeira. Coelho Neto cita o Barão do Rio Branco, que, nos seus tempos de mocidade, se exercitara na luta e disso se vangloriava já como chanceler da República. E se um Juca Paranhos deixava de lado a capoeira para ser um grande de seu país, nem sempre os bons meninos de família sabiam sair

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      página 7

      no tempo oportuno: quando o chefe de Polícia de Deodoro da Fonseca quis acabar com a "malta", prendeu, a todos indistintamente, como, em plena Rua do Ouvidor, ao irmão do Conde de São Salvador de Matosinhos, proprietário do jornal "O Pais" e grande amigo de Quintino Bocaiúva, ministro das Relações Exteriores. Sampaio Ferraz jogou em prisão comum Juca Reis, playboy da época, capoeira e desordeiro terrível, invadindo teatros para esbofetear, em cenas, as artistas suas amantes. Prêso, com os demais, e prontos para embarcar para o presídio de Fernando de Noronho. Foi um Deus-nos-acuda. Pedidos de soltura, de privilégios, não demoveram o Chefe de Polícia. Reunido o gabinete, Quintino mostrou sua situação difícil, perante a família. O Ministério dividiu-se. Deodoro, depois de demorada discussão, pretendeu resolver a questão, prestigiando o chefe de Polícia e dando completa satisfação à família poderosa. Quintino Bocaiúva não aceitou: que soltasse o capoeira ou êle se demitiria. Não se demitiu e Juca Reis seguiu com seus companheiros de arruaças para Fernando de Noronha e, de acôrdo com sugestão mediadora de Campos Sales, sòmente meses depois - é que de lá se foi para Portugal. Quando regressou ao Brasil, passados anos, já vinha bastante serenado. O império dos capoeiras do Rio de Janeiro também caíra: Sampaio Ferraz acabou com êles.

      Em Pernambuco, a perseguição policias processou idêntica extinção. Os capoeiras famosos, arruaceiros tremendos, a serviço das desordens, sobretudo políticas, foram desaparecendo. Inda menino, conheci um dêles, ainda famoso e já velho: Nascimento Grande, um gigante, andando bambo, respeitado por todos, que enchera

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      página 8

      a crônica agitada do Recife de outrora, com sua presença enorme, com suas brigas, desafiando políticos, o diabo. Gilberto Amado conta, em suas memórias, que estudante na Capital pernambucana, um noite, em local deserto, vinham, em direção oposta à sua, um homem e duas mulheres. Rapazola afoito gritou-lhe que lhe passasse uma delas. O homem repondeu-lhe: "E um puxão de orelhas, não que não? Siga seu caminho... menino." Insistiu na bravata. E como o homem enorme, surginho na sua frente, "alto, espadaúdo, perfilado", perguntasse-lhe se sabia com quem estava falando, gracejou: "Nascimento Grande". Só depois de rápido diálogo é que chegou à tremenda realidade: "O homem era Nascimento Grande... Era Nascimento Grande!" E diz o mestre Gilberto Amado: "Eu tinha ouvido falar no facínora, terror da cidade e arredores, que estava sendo procurado pela polícia segundo uns, e segundo outros, protegido por ela. Achava-se foragido - era o que todos diziam - no sertão, em Alagoas, ou na Paraíba. Tudo me poderia ter passado pela cabeça naquele instante, menos que aquêle indivíduo acompanhado das mulheres, na minha frente, na praça deserta e na noite escura, fôsse o famoso bandido cujo nome, só, fazia tremer o povo."

      Pois êste famoso bandido, "cujo nome, só, fazia tremer o povo", possuía incrível agilidade, grande da capoeira pernambucana, não se deixando prender, arrasando com guardas, soldados, patrulhas inteiras que tentavam atacá-lo. Foi um nome dos maiores do seu tempo, no Recife. O velho que conheci na minha adolescência, era respeitado, admirado, quase querido pelos que o conheceram e o viam, pacífico, livre pelas ruas da Capital pernambucana.

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      página 9

      Se hoje, na Bahia, temos a capoeira, como mero divertimento, mero jôgo, nem sempre os seus adeptos foram os ordeiros dançarinos da Liberdade, do Chame-Chame, do Pelourinho, do Alto da Amaralina apresentando-se nos seus barracos ou nas festas populares da Conceição e do Bonfim. Também os capoeiras baianos foram famosos tranca-ruas, até os princípios dêste século. Antônio Viana lembra, em crônica tão sugestiva, os capoeiras do Cais do Ouro, os homens do pôrto, os carregadores e os carroceiros, em lutas memoráveis. E evoca os "mestres desenganados da cabeçada, do rabo-de-arraia, do aú, da tesoura, do tronco, do balão, do tapa-ôlho dormideira, do calço, do salto mortal, do pega à unha, para falar sòmente da agilidade desarmada. Tão comum aos valentes que conheci. Valentes de fato! De dar e tomar. Com os pés, com as mãos. Com a cabeça. Com os peitos. Numa gira atordante". O cronista de "Casos e Coisas da Bahia" descreve a polícia, na perseguição ao capoeira, de casa em casa, de praça em praça, no cais, nas embarcações. "Eis que o sargento mais sagaz põe a mão à camisa do reminante. Êste, lesto, quebra o corpo e deixa farrapos no dedos do detentor. O facão rebrilha sôbre sua cabeça. O capoeira finge não ver. Prepara a cabeçada à bôca do estômago do policial. Manda-o pelos ares, com descida obrigatória às águas. Sem facão. Sem nada. Acode o companeiro de farda. Nova cabeçada. Mais um homem ao mar. Quantos tenham, seguem o mesmo destino. Desarmados. Desmoralizados..." E, saudoso, Antônio Viana: "Capoeiras de outrora! Bravos remanescentes da Bahia simples! Depositários da nobreza e da agilidade! Herança dos naturais!"

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      página 10

      Pois todos êles se fizeram na sua agilidade, na sua coragem, na sua audácia, nos barracões do jôgo da capoeira, escola onde o corpo humano ia encontrar os mil e um movimentos para o que desse e viesse. Os tempos passaram-se e com êles, as desordens das ruas, as brigas magníficas que enchiam de calor, de entusiasmo, de beleza física, as ruas não sòmente da Bahia, mas do Recife e do Rio. Como que se aquietaram no seu jôgo, ao som dos seus berimbaus, de seus pandeiros, de seus reco-recos, de seus cantos. Os amplos espaços da cidade inteira, cenário imenso de suas lutas, restringiram-se aos quatro cantos dos barracões do jôgo da capoeira. Hoje, os visitantes vão aos domingos ver os remanescentes dos bravos de outrora, os discípulos de Samuel Querido de Deus, Tibiri da Fôlha Grossa, de Cazumbá, que Caribé relembra "que era açougueiro e só cortava carne de boi de fraque e pistola ao cinto", e de tantos outros mestre, que hoje se chamam Valdemar, Pastinha, Mestre Bimba, Juvenal, Traíra, Cabelo Bom, Onça Preta. Sem falar nos mais jovens, inclusive meninos.

      Mas não se iluda o visitante, que as agilidades, os meneios, os requebros, das tardes inocentes nos barracões da Bahia, não dão aos seus donos a mesma coragem, a mesma firmeza, dos tempos heróicos. O adversário não provoque, nas ruas, o dançarinho sorridente de hoje: o perigo é fatal.

      Os prêtos de Angola que disfarçavam, com o jôgo da capoeira, o seu adestramento para a luta violenta, têm seus descendentes diretos nos dançarinos que o visitante comtempla, embevecido, na beleza pacífica dos seus movimentos...


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