Glórias: Jorge Amado e Caymmi dizem que êle é o maior no berimbau
do mestre, para ganhar 5 mil réis por semana. Para êle, calafetar embarcações é a pior profissão do mundo.
- Nunca vi um calafate naval bem de vida. E conheci muitos: Mestre Virgílio, Mestre Isaías, Mestre Ovídio, Mestre Gororó. Morreu tudo pobre. Eu sei o que é isso. Meu mestre tinha uma lei: quando errava, porrada.
E nem só do mestre levava cascudos. Atarantada com o ganha-pão em seu tabuleiro, sem poder olhar os dezesseis filhos, a negra baiana prevenia os vizinhos: „Se encontrar êsse menino fazendo arrelia, poder bater“. Garôto, Camafeu apanhava sem saber de quem. Mas a lição lhe valeu: foi sempre atirado, desde menino se enturmava no Pelourinho e no Maciel para ir brigar com outros moleques no Tororó; era respeitado até pelos temíveis capitães-de-areia, os pivetes largados no mundo. Rapazinho, conheceu as rodas de malandragem. Não era malandro, mas sabia defender-se, jogando a capoeira ou empregando os punhos: foi lutador de boxe, amador.
- Ê, eu encontrava tempo para tudo.
Curtido pelo sofrimento, Camafeu não chorou diante do Mercado destruído. Agüentou firme, consolou os inconsoláveis. Depois, sòzinho com seu amigo Othello Tornin, negro Camafeu cruzou os braços sôbre uma mesa do restaurante Continental, apoiou a cabeça e chorou como uma criança que perde o seu brinquedo.
À noite, junto ao cais, de costas para as cinzas ainda quentes do Mercado Modêlo, negro Camafeu cantou horas e horas. Na sua voz gutural, os versos do samba de roda enchiam a noite da Bahia.
„Eu dormi rico,
Amanheci pobre…“
A angústia arde como pimenta
Agora é a melancolia do nôvo mercado, o Popular, instalado num antido depósito de sucata adaptado às pressas para receber os quase duzentos barraqueiros. O ponto está distante do centro, ninguém o conhece, o Mercado já não tem aquela alegria da Praça Cairu. As vendas caíram.
- Hum… Aqui? O movimento não chega nem a 10 por cento do que era lá no Mercado Modêlo – diz Seu Nenen, um dos desesperançados.
Durante vinte dias, Camafeu ficou parado, sem dinheiro. O que o salvou foi a ajuda de Jorge Amado e Carybé. Êle pôde então retomar os negócios: comprou mercadorias, espalhou-as pela calçada da Praça da Alfândega. Quase trinta anos depois, negro Camafeu voltava a ser camelô. Êle e outros, como Seu Nenen.
- Com aquela filharada tôda, posso parar? Posso parar?
A princípio houve quem sonhasse em voltar à Praça Cairu. Era possível reconstruir o Mercado no mesmo lugar. Muitos esperaram um gesto heróico de Camafeu de Oxóssi, queriam dêle o magnetismo de uma liderança. O jornalista Vasconcelos Maia, ex-deputado estadual, lamenta que o nôvo mercado esteja tão distante. Magro, mais cabelos brancos do que devia ter com os seus 46 anos („são os sinais de muitas batalhas“), Vasconcelos acha que logo após o incêndio havia clima psicológico – tanta era a comoção popular – para a reconstrução do Mercado ali mesmo. O próprio Estado ganharia com isso: o Mercado Modêlo era um ponto de atração turística, uma fonte de renda para a Bahia.
- Se Camafeu tivesse feito um apêlo ao prefeito, garanto que o Mercado não tinha saído daqui. E não precisava muito esfôrço: as paredes laterais ficaram de pé.
Camafeu não quis ou não pôde ser um líder? Tentar fazer alguma coisa êle tentou, lá no antigo Mercado Modêlo. Pensou em fundar uma associação de comerciantes, chegou a falar com alguns. Quase todos fizeram corpo mole. Êle desistiu:
- Cada um por si, Deus por todos.
Valdemar Bôca-do-Mundo, cinqüentão mas cheio de energia, não se conforma com essa pasmaceira, o dia todo à espera da freguesia que não vem.
- Quer saber de uma coisa, Camafa? Aqui 98 por cento são uns filhos… Ninguém quer nada. Nós podíamos reunir o pessoal, negociantes, mulher, filhos, o diabo, e ir lá no prefeito expor a situação, pedir uma definição. Mas ninguém quer nada! Sabe por quê?
Porque ali no Mercado, diz Valdemar Bôca-do-Mundo, „tem muita gente de barriga cheia“. E começa a contar nos dedos os exemplos. Houve um que perdeu 540 contos num dia, todos sabem que ali se joga dominó a 10 contos a batida. Outro dia, chegaram três ônibus cheios de turistas, e nenhum barraqueiro quis tirar seu carro para que os ônibus pudessem estacionar. Parecia até que ninguém precisava de fregueses. Do ataque, Valdemar Bôca-do-Mundo passa às coisas práticas:
- Digamos que a nova obra custe 1 bilhão. Nós somos uns cem. Quem é aqui que não pode entrar com 10 milhões nesse rateio?
Negro Camafeu está no „escritório“, um bar junto ao Mercado, tomando cerveja. Ouve Bôca-do-Mundo, fica sorrindo, não diz nem sim nem não. Dez mil cruzeiros novos…
Quem sabe da situação de Camafeu é sua mulher, Dona Toninha, morena bonita, dentes tão brancos que parecem pérolas, uns vinte anos mais nova que êle. Depois do incêndio, os credores dilataram os prazos, mas agora os títulos estão vencendo. De noite, Camafeu fala durante o sono, se levanta, está sempre inquieto. Dona Toninha sabe a razão:
- A preocupação com as contas a pagar arde como pimenta.
Quem fala ioruba na Bahia?
Além da Barraca São Jorge, Camafeu possui outra. Lá está uma inscrição em ioruba, as letras de imprensa maiúsculas, de traço certo, bem desenhadas: „Ílè qdará ní-pwpq bábà Miòsossi qbá Kétw“. Êle traduz os dizeres: „Uma casa muito boa de meu pai Oxóssi, rei da nação Ketu“.
Camafeu fêz o curso de ioruba promovido pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, que contratou para êsse fim um professor nigeriano, Benese Lasebikan de Tundê. Durante quatro anos, de 1961 a 1964, Camafeu freqüentou aulas às têrças e quintas-feiras; no final do curso recebeu um diploma, consumido no incêndio do Mercado Modêlo.
- A língua é tonal, eu tinha bom ouvido, foi fácil aprender – diz Camafeu.
O etnólogo Waldeloir Rêgo, autor de um erudito ensaio sôbre capoeira (Capoeira Angola, Editôra Itapoã, Salvador, 1968), conta que também se matriculou nesse curso, mas desistiu nas primeiras aulas, por duvidar da capacidade do professor. Acha que nada perdeu, até economizou tempo. Waldeloir é um mulato claro, alto e elegante. Tem 37 anos, mas todos lhe dão 27, no máximo. Segundo conta Jorge Amado, é apresentado às pessoas de fora assim:
- Êste rapaz é quem mais entende de candomblé aqui na Bahia.
Waldeloir diz que há muita confusão no emprêgo do ioruba nos ritos baianos:
- Aqui, na Bahia, ninguém, absolutamente ninguém, fala ioruba corrente. Quando muito, o pessoal sabe apenas orikis, ou seja, saudações, necessàriamente breves.
Mas Camafeu diz que o aprendizado do ioruba naquele curso lhe foi de grande valia no I Festival Internacional de Artes Negras, realizado em Dacar, Senegal, em 1966, com participação de 33 países. Êle estava com o grupo baiano da delegação brasileira, ao lado da mãe-de-santo Olga de Ala-Ketu e de mestres da capoeira, como Pastinha, Gato e João Grande, entre outros. Graças a seus conhecimentos de ioruba, pôde conversar com a delegação nigeriana. E mais: as músicas e os toques que apresentou, com o seu grupo de capoeira, falaram mais à sensibilidade dos africanos que os sambas cantados por Ataulfo Alves e Elizeth Cardoso, por exemplo, que também integravam a delegação.
- O Ataulfo Alves, que depois veio propor que gravássemos um disco juntos, músicas dêle num lado, minhas no outro, só agradou quando cantou seu batuque Pai Joaquim d’Angola. Essa os crioulos de lá entendiam.